*Por Lais Barlati
O debate sobre o impacto do uso de telas na saúde de crianças e adolescentes ganhou novas dimensões nos últimos anos. Efeitos sobre a saúde mental, na aprendizagem e no desenvolvimento de crianças e jovens evidenciaram a insuficiência do arcabouço normativo para prever tais consequências, tendo em vista que o País não possui, até o momento, orientações específicas sobre o uso de telas voltadas ao público infantojuvenil.
A discussão tende a ganhar contornos mais evidentes nos próximos meses, no entanto, considerando as expectativas de lançamento de um Guia de Uso Consciente de Telas para Crianças e Adolescentes construído entre Ministérios e sociedade civil, além das sinalizações de que a equipe técnica do Governo estaria avaliando o envio de um projeto de lei com vistas à proibição do uso de celulares no ambiente escolar.
No Executivo Federal, o esforço remonta aos primeiros dias da gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com o anúncio da criação da Secretaria de Políticas Digitais (SPDIGI) no âmbito da Secretaria de Comunicação (SECOM) da Presidência. A estrutura já indicava um olhar transversal do Governo sobre o ambiente digital - voltado ao debate sobre liberdade de expressão, educação midiática e direitos na Rede -, em diálogo com áreas diretamente impactadas como Educação (MEC), Saúde (MS), Cultura (MCULT) e Justiça e Segurança Pública (MJSP).
Quase dois anos após a organização destes espaços, os principais resultados dos esforços estão previstos para serem lançados nas próximas semanas: o lançamento do Guia para Uso Consciente de Telas por Crianças e Adolescentes está previsto para outubro de 2024, no mês da Criança.
Tal iniciativa do Executivo Federal visa dar contorno ao impacto do uso de telas na interface com a pauta de Crianças e Adolescentes, tendo início em outubro de 2023, por meio da promoção de uma consulta pública para inauguração do debate. Este processo foi considerado ponto de partida para as atividades do Grupo de Trabalho para elaboração de Guia para Uso Consciente de Telas e Dispositivos Digitais por Crianças e Adolescentes, instituído em dezembro de 2023.
Composto por 7 Ministérios e 18 representantes da sociedade civil, especialistas acadêmicos ou entidades com longo histórico de atuação no tema, tem como competência articular e propor estratégias intersetoriais para mitigar o uso excessivo e promover o uso consciente de dispositivos digitais por crianças e adolescentes, com base em evidências científicas, recomendações de especialistas e boas práticas internacionais. O GT já realizou reuniões com plataformas como Netflix, Google, Meta e Tiktok e deverá, a partir do Guia, auxiliar na produção e disseminação de cartilhas, campanhas e processos formativos para crianças, responsáveis e educadores.
Além do Guia, a discussão está presente no Governo Federal no âmbito dos esforços de atualização da Estratégia Brasileira de Educação Midiática e no próprio Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), que avançou na discussão sobre crianças e adolescente no ambiente digital a partir da Resolução 245/2024, publicada em abril de 2024, que dispõe sobre os direitos das crianças e adolescentes em ambiente digital.
As diretrizes se baseiam nos princípios da proteção integral da criança e do adolescente, ancorando-se na Constituição Federal e em documentos internacionais como o Comentário Geral nº 25/2021, do Comitê de Direitos das Crianças da ONU. Entre as principais previsões da Resolução, está o desenvolvimento da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Criança e do Adolescente no ambiente digital, de forma conjunta entre a Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA).
Como adiantado desde a instituição do GT para construção do Guia de Uso Consciente de Telas, o Governo Federal também pretende avançar em discussões como o uso de telas no contexto escolar. As expectativas ganharam maiores contornos no final de setembro, com uma declaração do ministro Camilo Santana (PT) afirmando que o MEC deverá encaminhar em breve um projeto de lei ao Congresso Nacional para restringir o uso de celulares em escolas públicas e privadas.
Tal sinalização impulsionou uma resposta do Legislativo Federal, cada vez mais pressionado por um posicionamento em torno do debate de regulação das redes. Após os anúncios, foi percebido um movimento vindo de parlamentares opositores ao Governo, no sentido de dar celeridade ao tema no âmbito da Comissão de Educação (CE) da Câmara dos Deputados - atualmente comandada pelo deputado Nikolas Ferreira (PL/MG) -, com vistas a retirar o protagonismo do Governo Federal no debate.
Ainda que a discussão sobre impactos das redes na saúde e desenvolvimento de crianças e adolescentes exista no Legislativo, especialmente concentrada no PL 2628/2022 do senador Alessandro Vieira (MDB/SE), o tema pode ganhar novos impulsos a partir do esforço e mobilização recente do Governo Federal em estabelecer, pela primeira vez, parâmetros mais contundentes à presença de crianças e jovens em ambientes digitais.
Apesar disso, gestores, sociedade civil e o Judiciário brasileiro ainda aguardam avanços normativos sobre as responsabilidades de plataformas digitais neste processo.
O debate geral sobre regulamentação das redes
A regulamentação das redes - e os impactos sobre a vida e saúde humanas - desafiam governos mundo afora e, da mesma forma no Brasil, o debate esbarra na discussão sobre limites e responsabilidades das empresas de tecnologia sobre a disseminação de conteúdos. A pandemia de COVID-19 e o período eleitoral, por exemplo, realçaram este debate no âmbito nacional, ainda sem definições.
Movimentações recentes por parte do Supremo Tribunal Federal (STF) devem, no entanto, impulsionar um Congresso Nacional “omisso” diante de suas responsabilidades. O Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, anunciou na última semana a data para o julgamento de ações sobre o Marco Civil da Internet e plataformas digitais para o dia 27 de novembro de 2024.
Sinalizações anteriores já indicavam o mês de novembro como central ao debate, após solicitações para uma análise conjunta feita pelos Ministros Relatores das três ações em curso, que tratam sobre a moderação e a responsabilidade de provedores e plataformas digitais sobre o conteúdo de terceiros.
A medida pode ser interpretada como resposta a uma inércia do Congresso Nacional, que não avançou com o debate desde 2023. Na oportunidade, o STF chegou a adiar a votação de tais ações com a finalidade de aguardar posicionamentos da Câmara dos Deputados em projetos relacionados à regulamentação das redes, que se acumulam.
Ainda que a discussão sobre Inteligência Artificial esteja mais avançada no Senado Federal, o debate sobre regulamentação das redes não saiu do papel na Câmara dos Deputados. O ano de 2024 contou com reviravoltas, ao longo de todo o primeiro semestre, acerca do principal Projeto de Lei (PL) em tramitação no tema, conhecido como PL das Fake News (PL 2360/2020). Sob o argumento de que o texto adquiriu uma narrativa polemizada, em junho de 2024, o presidente da Câmara dos Deputados, dep. Arthur Lira (PP/AL), assinou o ato de criação de um Grupo de Trabalho que irá discutir a regulamentação das redes sociais e do combate à disseminação de notícias falsas.
Na prática, a movimentação retira o protagonismo da relatoria do dep. Orlando Silva (PCdoB/SP), que articulou pela construção e revisão do texto desde abril de 2023, e concentra a discussão do tema em um GT composto por 20 deputados federais, cuja composição inclui parlamentares abertamente contrários à criminalização de notícias falsas, por exemplo.
A recomposição da discussão foi apontada por parlamentares e por organizações da sociedade civil como resultado de forte pressão das Big Techs sobre o presidente Arthur Lira (PP/AL), tendo em vista que não havia concordância das plataformas digitais com determinações postas no relatório apresentado por Silva.
Posto como desafio para os próximos anos, o tema pode ganhar algum impulso no Congresso a partir da pressão e atuação do Judiciário brasileiro. Ainda assim, não parece haver expectativas altas sobre maiores contornos ou definições nos próximos meses; os avanços esbarram na complexidade e dimensão do tema, na disputa com demais prioridades do Congresso, bem como na resistência das Big Techs.